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Perfil: Nascida em Joanópolis

  • Foto do escritor: Giovanna Maciel
    Giovanna Maciel
  • 31 de jan. de 2021
  • 8 min de leitura

Dona de casa, Benedita de Oliveira Natali foi bem receptiva quando fui entrevistá-la, afinal, a senhora parda de 1,70 de altura e cabelos quase completamente grisalhos me conhece desde que minha avó passou a morar na casa ao lado da sua, há aproximadamente 13 anos. A senhora de 79 anos nasceu no dia treze de fevereiro de 1935 em um lugar conhecido como “a cidade do lobisomem”. Joanópolis, localizada no interior de São Paulo, tem essa “fama” por ser contada muitas histórias sobre a visita do ser lendário no local. Por ser criança na época, dona Benedita acreditava e tinha um certo receio por essas criaturas. Quando perguntei do que temia agora, ela só me respondeu no dia seguinte: “Ser enterrada viva”, lembrando do caso do ator Sérgio Cardoso. O terceiro de quatro filhos de dona Benedita, Sérgio Tomaz, estava presente no segundo dia da entrevista, e me explicou o caso ocorrido em 1972. O ator ‘global’ era portador de catalepsia patológica, doença rara que deixa os membros rígidos por horas, e, por conta disso, Cardoso teria sido enterrado vivo. Depois de aberto o caixão por motivo desconhecido por Sérgio Tomaz, o corpo estaria virado de bruços e com o rosto arranhado. Acredita-se que Sérgio Cardoso teria morrido de asfixia.

Até casar-se com o policial aposentado Osvaldo Natali, Benedita nasceu e viveu numa família humilde. Seu pai, José Gomes de Oliveira, era agricultor, e sua mãe, Laura Maria de Jesus, era dona de casa e agricultora. Ele tinha olhos azuis, era branco, filho de português e descendente de italiano e alemão, e ela negra, descendente de índio e africano: não nos resta dúvidas de que a história dos dois não foi fácil. “Ele amava tanto ela que chorou tanto quando ela morreu. Eu não sei a história, mas ela devia ter sofrido muito [quanto ao preconceito], não sei. Teve, lógico que teve, acha… Mais de cem anos atrás ele escolher ela ?!”, declarou.

A mudança frequente de residência fez com que Benedita não terminasse os estudos e não realizasse o sonho de ser professora de português. Analfabetos, seus pais não tinham noção de uma vida profissional, assim, incapazes de dar conselhos sobre o assunto para as cinco filhas. Provavelmente tenha sido um dos motivos que levou a filha caçula a nunca trabalhar, apenas cuidar dos dois filhos de Oscarlina e dos três filhos de Carmen aos 14 anos de idade.

Dona Benedita tem quatro irmãs: Oscarlina, Eliza, Carmen e Clementina. Oscarlina não ficou muito tempo em casa. Saiu de casa aproximadamente aos 15 anos após casar-se. Benedita, por ser a mais nova, tratava Oscarlina com muito respeito. Eliza foi morar junto com Oscarlina. Carmen foi quem cuidou de Benedita após o falecimento da mãe, tendo como consequência uma “quase” relação de mãe e filha. Clementina e Benedita tinham quase a mesma idade, o que ajudou a serem muito amigas.

“Minha mãe foi uma heroína”, a morena comentou cheia de orgulho enquanto arrumava o cobertor ocre em cima de si. Sentada em seu sofá de couro, dona Benedita contou que se fosse escrever um livro seria sobre sua mãe, a história de vida dela.

Quinze dias antes de sua filha caçula nascer, Laura teve seu esposo paralítico. Senhor José contou para Benedita a causa da paralisia: ele levantou, tomou café da manhã, e quando estava indo trabalhar, não percebeu uma poça d’água em frente ao terreno do sítio e caiu. “Então eles falavam que era aistupor. Não sei se existe isso”, dona Benedita contou com a expressão pensativa em seu rosto. Segundo o minidicionário Aurélio: “Estupor: sm. 1. Med. Estado mórbido em que o doente, imóvel, não reage a estímulos externos, nem a perguntas. 2. Pop. Qualquer paralisia repentina.”

Após o ocorrido, a mãe de dona Benedita teve que cuidar do marido, de cinco filhas e do sítio sozinha. Quando Benedita era criança, a mudança de residência era frequente. “A gente vivia viajando. Parecia cigano”, comenta aos risos que provocavam linhas de expressão por todo seu delicado rosto. Sua família passou por cidades como Joanópolis, Terra Preta, Mairiporã, Embu-Guaçu. Quando se mudaram para essa última, outra família teve que dividir uma casa com a sua família por não haver lugar para todos, restando apenas um lugar para descansar: o chão. “Eles trabalhava na roça de cortar lenha. Minha mãe também. Fazia serviço de homem. Cortava lenha, cortava cana... Tudo o que o homem fazia, ela fazia. Quando ela era contratada, era como se fosse homem.”

Laura, mãe de Benedita, sofria de bronquite asmática, o que lhe causava uma respiração com ruído. Benedita tinha 12 anos quando as crises de Laura pioraram. Em um domingo chuvoso, a afro-brasileira fez uma horta com couve e outras verduras enquanto era observada pela filha mais nova. Benedita desconfia que a chuva piorou ainda mais sua bronquite. Na segunda-feira seguinte, Laura amanheceu de cama. Distante de um hospital e distante de ter condições financeiras para solicitar um médico, sua filha Carmen teve que fazer um caldo que poderia melhorar sua saúde. Porém, foi em vão. Quando o sol se pôs, o coração de Laura já não batia mais. “Eu fiquei assim um mês... Chegava no quarto e parecia que eu escutava o chiado que ela tinha, chiado alto, fala de gato”, Benedita relembra com um quase sussurro e os olhos baixos.

Benedita e seu pai tiveram que ir morar com Oscarlina, sua irmã mais velha, no bairro Vila Rio de Janeiro, em Guarulhos. Em uma tarde qualquer, senhor José foi à venda comprar doces para suas netas que ainda eram pequenas acompanhado de um conhecido. Um lado de seu corpo era paralisado, causando moleza em seu braço e fazendo sua perna ser arrastada. Portanto, senhor José avisou seu colega que iria na frente e que depois ele o alcançava. A noite chegou e José não apareceu em casa. No dia seguinte, nada. Os dias iam se passando, as pessoas próximas à Benedita saíam de casa à procura de José e traziam cada vez mais desespero. Os bombeiros, a polícia e cachorros de resgate foram chamados. A incerteza de o homem estar bem, estar com vida, arrancava as noites de sono. Passaram-se oito dias, as forças já estavam esgotando. Benedita decidiu ir à procura de seu pai pela primeira vez com uma de suas irmãs. Ela não havia procurado antes por ter apenas 14 anos. Urubus rondavam o céu, chamando a atenção das duas. Um homem que estava carpintando o mato perto de onde os pássaros carnívoros estavam, após solicitado, ajudo-as a chegar até o local. Chegando na pequena clareira, o homem disse para Oscarlina: “Ó, ali tem um corpo. Quer ver se é seu pai?”. No mesmo momento em que a mulher olhou, soltou um grito. Não era de se esperar que fosse encontrar o pai vivo após oito dias de busca, mas também não era de se esperar encontrar seu progenitor sem vida, ainda mais após dois anos do falecimento da mãe. A polícia de Guarulhos foi chamada, mas quando chegaram ao local no dia seguinte, os urubus já haviam se alimentado do corpo. Dona Benedita se sentiu incomodada ao tocar no assunto, tanto que apenas me contou no segundo dia da entrevista, na ausência de seu filho. Quando estava para terminar, sua voz já estava trêmula e seus olhos já não conseguiam focar nos meus por um longo período de tempo. Seu pai sempre que saía levava consigo uma bolsa de pano, onde deixava seu dinheiro e os doces para as netas. No dia que o corpo foi encontrado, a bolsa foi achada longe do corpo, entre o mato. Segundo Benedita, estava com sinais de que o corpo foi arrastado, e desconfia ter sido algum cachorro. “Eu não posso ver falar ‘desapareceu uma pessoa’. Quando fala ‘desapareceu’, eu acho melhor saber que morreu, ‘Fulano morreu’. Morreu você já chora, já sofre... Mas quando fica sumido é uma coisa horrível. Você fica naquela dúvida, naquela esperança que não é, não é... Você não quer acreditar naquilo. Agora quando fala que está desaparecido, eu imagino o quanto a pessoa está sofrendo”, desabafa.

Namorar um rapaz loiro, alto, dos olhos verdes, não impedia a moça de 15 anos paquerar o cavaleiro de farda azul quase todos os dias em que ele desfilava em frente a sua humilde casa. O namorado de Benedita era alcóolatra. “Eu namorava com ele porque, sabe, quando a gente tem essa idade quer namorar.” Mal terminou de falar e já caiu no riso. Segundo ela, o namoro naquela época era só na frente de casa. Senhor Osvaldo e dona Benedita começaram a se paquerar para valer no ônibus. Quando perguntei sobre, o senhor alto, com poucos cabelos e todos eles grisalhos, comentou dando risada que a esposa dizia: “ó, lá vem vindo o bigodinho”. Benedita logo retruca: “Eu gostava muito do bigodinho dele, mas eu falava ‘lá vem o guardinha’ porque ele era guarda né. Magrinho, elegante.” Um sorriso surgiu em seu rosto expondo as lembranças boas. “Mas que eu gostava do bigodinho dele, eu gostava. Que naquela época se usava bigode né. Agora o bigodinho quem falava devia ser outras que paquerava ele né. E ele fala que é eu.”

Benedita e Osvaldo começaram a namorar quando ela tinha 17 anos e ele 22. Após o evento, meninas que já haviam tentado algum relacionamento com Osvaldo (sem sucesso) criticavam sua namorada e a questionavam como ela tinha o conseguido e elas, que se consideravam mais belas, não tinham.

Sra. Natali comentou que o relacionamento era estranho, pois ela era espontânea e ele tímido, ainda mais na frente da própria família, onde eram raras às vezes em que falava com a namorava. Sua irmã, Carmen, fazia o papel de mãe, por isso Osvaldo foi pedir à ela a mão de Benedita em casamento. No começo do namoro, Carmen não aceitou, afinal, Benedita acabara o namoro com o outro garoto havia pouco tempo, mas ao passar do tempo, ela foi aceitando.

A timidez fez com que Osvaldo faltasse com alguns costumes básicos entre um casal, como por exemplo apelidos carinhosos. “Ô, às vezes mor, mas era ô perto dos outros. Ele era tão tímido que eu não sei como eu consegui casar com ele”, declarou Benedita. “Acho que ele não lembra mais nada disso . Mas foi muito bom viu. Eu casei por amor mesmo.” Senhor Osvaldo sofre de alzheimer e não raras as vezes em que lembranças como essas são esquecidas. O estágio já está avançado, o que o faz não lembrar de algumas pessoas que conhece há anos, como eu.

O medo de se envolver com alguém que não fosse a pessoa certa fez Benedita escolher seus parceiros “a dedo”. Religiosa, sempre pedia a Deus para que Ele preparasse alguém que não tivesse o vício de beber, de fumar, não frequentasse bar, para que ela pudesse casar. Até fez uma promessa para Nossa Senhora Aparecida que se ela encontrasse alguém como pedido para Deus, levaria o seu véu e sua grinalda para Aparecida do Norte. Realizado o pedido, Benedita foi com os objetos usados em seu casamento até a cidade, como o prometido.

O casamento foi humilde, porém foi como Benedita sonhou. A lua de mel era para ser uma viagem, mas o ciclo reprodutivo de Benedita se adiantou alguns dias, causando o cancelamento da lua de mel.

Os Natali tiveram quatro filhos: Osvaldo Aparecido (58), José Carlos (56), Sérgio Tomaz (53) e Marco Antonio (46). O primeiro se tornou advogado e pastor, o segundo é aposentado na Eletropaulo, o terceiro é engenheiro e professor, e o caçula economista. Após seu casamento, as condições financeiras de Benedita começaram a melhorar, podendo proporcionar uma vida melhor para seus filhos do que a infância e adolescência que ela teve.

Em um programa do Sbt, Osvaldo Natali ganhou um prêmio, que dividiu entre seus filhos e comprou um carro.

Há 40 anos Benedita descobriu que sofre de arritmia, e há 2 anos encontrou um câncer no pescoço. Com a aposentadoria de senhor Osvaldo e com a ajuda de seus filhos e noras, dona Benedita trata das doenças sem muita dificuldade, e as enfrenta com bom humor.

A mudança de classe social de Benedita foi repentina, o que provavelmente pode ter causado inveja, porém ela não liga muito para o que os outros pensam sobre ela. “Melhor coisa que a gente tem na vida é você não se incomodar com o que os outros pensam de você. O que eu penso de mim é importante. O que Deus pensa de mim também”.


(Matéria escrita em 2014)


Nota: Benedita de Oliveira Natali faleceu em 2016, aos 81 anos, devido ao câncer.

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